Carta ao Sr. Bispo do Rio de
Janeiro
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em Jornal
do Povo, Rio de Janeiro, 18/04/1862.
Exma. Revma. Sr. — No meio das práticas
religiosas, a que as altas funções de prelado chamam hoje V. Exa., consinta que
se possa ouvir o rogo, a queixa, a indignação, se não é duro o termo, de um
cristão que é dos primeiros a admirar as raras e elevadas virtudes, que exornam
a pessoa de V. Exa.
Não casual, senão premeditada e muito de propósito, é a coincidência
desta carta com o dia de hoje. Escolhi, como próprio, o dia da mais solene
comemoração da Igreja, para fazer chegar a V. Exa.algumas palavras sem atavios
de polêmica, mas simplesmente nascidas do coração.
Estou afeito desde a infância a ouvir louvar as virtudes e
os profundos conhecimentos de V. Exa. Estes verifiquei-os mais tarde pela
leitura das obras, que aí correm por honra de nossa terra; as virtudes se as
não apreciei de perto, creio nelas hoje como dantes, por serem contestes todos
quantos têm a ventura de tratar de perto com V. Exa.
É fiado nisso que me dirijo francamente à nossa primeira
autoridade eclesiástica.
Logo ao começar este período de penitência e contrição,
que está a findar, quando a Igreja celebra a admirável história da redenção,
apareceu nas colunas das folhas diárias da Corte um bem elaborado artigo,
pedindo a supressão de certas práticas religiosas do nosso país, que por
grotescas e ridículas, afetavam de algum modo a sublimidade de nossa religião.
Em muito boas razões se firmavam o articulista para provar
que as procissões, derivando de usanças pagãs, não podiam continuar a ser
sancionadas por uma religião que veio destruir os cultos da gentilidade.
Mas a quaresma passou e as procissões com ela, e ainda
hoje, Exmo Sr., corre a população para assistir à que, sob a designação de Enterro
do Senhor, vai percorrer esta noite as ruas da capital.
Não podem as almas verdadeiramente cristãs olhar para
essas práticas sem tristeza e dor.
As conseqüências de tais usanças são de primeira intuição.
Aos espíritos menos cultos, a idéia religiosa, despida do que tem mais elevado
e místico, apresenta-se com as fórmulas mais materiais e mundanas. Aos que,
menos rústicos, não tiveram, entretanto, bastante filosofia cristã para opor a
esses espetáculos, a esses entibia-se a fé, e o ceticismo invade o
coração.
E V. Exa.não poderá contestar que a nossa sociedade está
afetada do flagelo da indiferença. Há indiferença em todas as classes, e a
indiferença, melhor do que eu sabe V. Exa, é o veneno sutil, que corrói fibra
por fibra um corpo social.
Em vez de ensinar a religião pelo seu lado sublime, ou
antes pela sua verdadeira e única face, é pelas cenas impróprias e
improveitosas que a propagam. Os nossos ofícios e mais festividades estão longe
de oferecer a majestade e a gravidade imponente do culto cristão. São festas de
folga, enfeitadas e confeitadas, falando muito aos olhos e nada ao coração.
Neste hábito de tornar os ofícios divinos em provas de
ostentação, as confrarias e irmandades, destinadas à celebração dos respectivos
oragos, levam o fervor até uma luta, vergonhosa e indigna, de influências
pecuniárias; cabe a vitória, à que melhor e mais pagãmente reveste a sua
celebração. Lembrarei, entre outros fatos, a luta de duas ordens terceiras,
hoje em tréguas, relativamente à procissão do dia de hoje. Nesse conflito só
havia um fito — a ostentação dos recursos e do gosto, e um resultado que não
era para a religião, mas sim para as paixões e interesses terrestres.
Para esta situação deplorável, Exmo Sr., contribui
imensamente o nosso clero. Sei que toco em chaga tremenda, mas V.
Exa.reconhecerá sem dúvida que, mesmo errando, devo ser absolvido, atenta a
pureza das intenções que levo no meu enunciado.
O nosso clero está longe de ser aquilo que pede a religião
do cristianismo. Reservadas as exceções, o nosso sacerdote nada tem do caráter
piedoso e nobre que convém aos ministros do crucificado.
E, a meu ver, não há religião que melhor possa contar bons
e dignos levitas. Aqueles discípulos do filho de Deus, por promessa dele
tornados pescadores de homens, deviam dar lugar a imitações severas e dignas;
mas não é assim, Ex.mo Sr., não há aqui sacerdócio, há ofício
rendoso, como tal considerado pelos que o exercem, e os que o exercem são o
vício e a ignorância, feitas as pouquíssimas e honrosas exceções. Não serei
exagerado se disser que o altar tornou-se balcão e o evangelho tabuleta. Em que
pese a esses duplamente pecadores, é preciso que V. Exa.ouça estas verdades.
As queixas são constantes e clamorosas contra o clero; eu
não faço mais que reuni-las e enunciá-las por escrito.
Fundam-se elas em fatos que, pela vulgaridade, não merecem
menção. Merca-se no templo, Exmo. Sr., como se mercava outrora quando Cristo
expeliu os profanadores dos sagrados lares; mas a certeza de que um novo Cristo
não virá expeli-los, e a própria tibieza da fé nesses corações, anima-os e
põe-lhes na alma a tranqüilidade e o pouco caso pelo futuro.
Esta situação é funesta para a fé, funesta para a
sociedade. Se, como creio, a religião é uma grande força, não só social, senão
também humana, não se pode contestar que por esse lado a nossa sociedade contém
em seu seio poderosos elementos de dissolução.
Dobram, entre nós, as razões pelas quais o clero de todos
os países católicos tem sido acusado.
No meio da indiferença e do ceticismo social, qual era o
papel que cabia ao clero? Um: converter-se ao Evangelho e ganhar nas
consciências o terreno perdido. Não acontecendo assim, as invectivas praticadas
pela imoralidade clerical, longe de afrouxarem e diminuírem, crescem de
número e de energia.
Com a situação atual de chefe da Igreja, V. Exa. compreende
bem que triste resultado pode provir daqui.
Felizmente que a ignorância da maior parte dos nossos
clérigos evita a organização de um partido clerical, que, com o pretexto de
socorrer a Igreja nas suas tribulações temporais, venha lançar a perturbação
nas consciências, nada adiantando à situação do supremo chefe católico.
Não sei se digo uma heresia, mas por esta vantagem acho
que é de apreciar essa ignorância.
Dessa ignorância e dos maus costumes da falange
eclesiástica é que nasce um poderoso auxílio ao estado do depreciamento da
religião.
Proveniente dessa situação, a educação religiosa, dada no
centro das famílias, não responde aos verdadeiros preceitos da fé. A religião é
ensinada pela prática e como prática, e nunca pelo sentimento e como
sentimento.
O indivíduo que se afaz desde a infância a essas fórmulas
grotescas, se não tem por si a luz da filosofia, fica condenado para sempre a
não compreender, e menos conceber, a verdadeira idéia religiosa.
E agora veja V. Exa. mais: há muito bom cristão que
compara as nossas práticas católicas com as dos ritos dissidentes, e, para não
mentir ao coração, dá preferência a estas por vê-las símplices, severas,
graves, próprias do culto de Deus.
E realmente a diferença é considerável.
Note bem, Exmo. Sr., que eu me refiro somente às excrescências
da nossa Igreja Católica, à prostituição do culto entre nós. Estou longe de
condenar as práticas sérias. O que revolta é ver a materialização grotesca das
coisas divinas, quando elas devem ter manifestação mais elevada, e, aplicando a
bela expressão de São Paulo, estão escritas não com tinta, mas com o
espírito de Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne do
coração.
O remédio a estes desregramentos da parte secular e
eclesiástica empregada no culto da religião deve ser enérgico, posto que não se
possa contar com resultados imediatos e definitivos.
Pôr um termo às velhas usanças dos tempos coloniais, e
encaminhar o culto para melhores, para verdadeiras fórmulas; fazer praticar o
ensino religioso como sentimento e como idéia, e moralizar o clero com as
medidas convenientes, são, Exmo. Sr., necessidades urgentíssimas.
É grande o descrédito da religião, porque é grande o
descrédito do clero. E V. Exa.deve saber que os maus intérpretes são nocivos
aos dogmas mais santos.
Desacreditada a religião, abala-se essa grande base da
moral, e onde irá parar esta sociedade?
Sei que V. Exa.se alguma coisa fizer no sentido de curar
estas chagas, que não conhece, há de ver levantar-se em roda de si muitos
inimigos, desses que devem-lhe ser pares no sofrimento e na glória. Mas V.
Exa.é bastante cioso das coisas santas para olhar com desdém para as misérias
eclesiásticas e levantar a sua consciência de sábio prelado acima dos
interesses dos falsos ministros do altar.
V. Exa.receberá os protestos de minha veneração e me
deitará a sua bênção.